domingo, julho 23, 2017

A Cultura



Portugal projecta-se como um espaço de convivialidade cultural (inter-entre-pan/cultural) a partir do qual a experiência da identidade pode assumir-se como uma via de consumação do Universal na individuação espiritual, ou seja, na abertura ao abissal da com-vivência, no qual o que se descobre limitado procura a completude e a superação da cisão, existencial, territorial, grupal, etc.
A individuação espiritual, apesar de paralela ao egotismo, ao nacionalismo, ao internacionalismo totalitário, não se confunde com estas formas de deturpação do sentido e da finalidade da vida espiritual. Seria sempre terrível vivermos a limitação como o próprio do Espírito, quando Este se oferece na liberdade irrestrita, sempre como absolução do relativo, como sublimação da concretude solidamente fechada em si, como, enfim, emancipação através da qual os simples gestos da existência assumem um significado plenificante.
Se nos descobrimos como seres com múltiplas limitações físicas, psíquicas, noéticas, práxicas… é porque estamos a tomar consciência das nossas ferramentas agápicas (e eróticas, Eros absolutiza-se em Agapê), do nosso manancial de recursos inerente à nossa condição de seres capazes de amar, de seres que no Amor encontram a sua mais viável e sólida capacitação.
Assim, tanto os dons como os bens que possuímos ao nível da existência material, são inerentes à nossa condição de conviventes, de seres de expressão e conversão, de conversação. Há uma filologia vital que nasce da descoberta do Espírito como o que rasga o hábito (a rotina) e a descrença na vida sem limitações extrínsecas. Isto é válido também para os povos: as fronteiras são pontes, são instâncias de abertura.
O Outro só existe como o que se opõe ao Mesmo se não acedermos ao que é próprio: o que é próprio é que cada ser é único e na sua irrecusável liberdade não tem que ser conforme a nada de exterior ao seu fluxo vital, ao seu sopro insubstante, à sua realeza sobre este mundo.
Não há estrangeiro, nem nacional. No mundo do Espírito não há máquinas totalitárias de criação de espaços de contenção da convivialidade fraterna. Por isso as Línguas são a manifestação mais pura do fogo do Espírito. Uma Língua não é uma entidade fechada, não é um dispositivo de sujeição espiritual, antes um território utópico que está continuamente, enquanto for vivo, animado por um influxo de transubstanciação, de transmutação, de abdicação de si numa projecção para a universal entre-expressão que, se alguma vez atingida, tornará as Línguas e os seus falantes capazes de tudo dizer e de tudo entender, com ou sem palavras, pelo Amor.
Uma Língua não é uma mercadoria, nem deve servir para criar ‘mercados’ de desumanidade. Porque aos não falantes duma Língua não lhes falta nada, em nada são menos ou mais que os outros. E só haverá Paz no mundo através da vida do Espírito. Isto quer dizer que tudo o que servir para discriminar os seres uns em relação aos outros, enquanto existir, será um obstáculo à Paz.
Nada existe que não seja resultante da co-presença de tudo em tudo.
Daqui resulta que a nossa apropriação do mundo deve ser ética. Antes de tudo o mais o que importa é a nossa abertura compassiva em relação ao que de nós poderá ser requisitado pela patência do Amor. É no ser-com que o nosso ser assume a sua verdade existencial.
A Cultura irrompe deste espaço de disponibilidade grácil, desta exuberância radical de que tudo nasce e que permite a criatividade como o que brota da mente, vindo de além e indo para além dela. Aquilo a que comummente se chama “cultura” surge quase sempre sem nascer, não ‘brota’ do sem fundo, é produzido, surge no mundo investido daquela dispersividade egolátrica que gera a inveja, a arrogância, a consciência alienada para a qual o mundo só pode ser um concurso de aves canoras sem a possibilidade de consonância. É a concorrência das máquinas cadavéricas que adiaram sine die o seu Encontro com a vida para, na certeza da morte, erigirem o seu mausoléu, recheado com tudo o que em si mataram de belo e de bom, em nome da ‘fama’, da ‘posteridade’, da ‘notoriedade’.
A Cultura, no seu sentido autêntico, é a convivência dos criadores na liberdade sem limites do Espírito. Criadores são todos os que se descobrem em ruptura com o viver domesticado, tornado mercadoria, esventrado de todas as entranhas de onde a insubmissão pode ganhar forças e voz. Criadores são os que assumem a patência do Infinito no finito. Podem ser pintores, escritores, sem-abrigo, crianças a brincar na rua, idosos a jogar às cartas no jardim, mulheres, homens, pássaros, cães, cientistas, malabaristas, inventores… Entre uns e outros venha o diabo e escolha. A escolha diabólica nunca é criativa, a criatividade é simbólica, por isso os seus frutos (o termo ‘obra’ está demasiado contaminado pela sujidade da Razão Pura) são sempre maduros, ou seja, nunca estão acabados porque abrem sempre para o que deles poderá nascer, resultado de germinação ou contaminação.
Não faz sentido preterirmos este ou aquele indivíduo em nome do que quer que seja que nos permita compreender o incompreensível. Embora tenhamos que nos manter inamovíveis na imensidade. Não significa isto, portanto, que tudo é aceitável. Há um combate radical a empreender em qualquer via espiritual, um combate afirmativo, de fidelidade à verdade da vida uni-multímoda. Cada acto de criação instaura uma fonte de sentido que pode elevar quem dela beba ao estatuto de criador. Criar nunca é um acto isolado, é uma ferida na pele coriácea do mundo da oferta e da procura. A doação e a aceitação em (com) reconhecimento, isso deveria ser a base da divina economia do mundo, da eudemonia política.
Possam os dons da Cultura ser gráceis. E que o sermos em sociedade possa expandir-se no Reconhecimento e na aspiração à disponibilidade para o Imprevisto.

quarta-feira, julho 21, 2010

"People are strange"



















Quantas vezes nos descobrimos desconexos com a vida? O tema dos Doors ‘people are strange’ aflora essa atmosfera emocional meio nostálgica, meio depressiva em que mergulhamos quando nos apercebemos do abismo que nos separa dos outros.

A maior parte da vida social transcorre sob o signo da máscara e da busca de aceitação. A nossa vida é, em grande medida, egolátrica. E o ego cimenta-se na nossa interioridade através do medo e da culpa. O nosso ego sabe que os outros egos se alimentam do mesmo tipo de negatividade, daí que grande parte da nossa vida social assente na tentativa de manipulação dos outros egos para que se submetam aos nossos intentos.

Há muitas formas de chantagem emocional. Todas elas viradas para o reforço do ego e da sua intenção de instaurar um regime de terror na nossa vida. E de que temos medo? Temos medo de não sermos amados, de não merecermos o amor, de nos vermos ostracizados, rejeitados pelos outros egos. Mas no fundo o medo é uma manifestação de vitalidade do ego e a pior forma de manipulação e de chantagem: a do ego sobre a totalidade da nossa mente. É como se um grão de pó quisesse estender o seu domínio sobre todo o universo.

Ora, a nossa mente não tem limites, é uma extensa praia para o infinito. Uma praia onde tudo se encontra em vias de consumação. O sofrimento empareda-nos numa cela de egotismo e impede-nos de acedermos ao apelo do mais fundo. Para onde quer que nos desloquemos estamos prisioneiros da nossa própria insatisfação.

Para nos descobrirmos libertos o primeiro passo é o fazermos as pazes connosco e com a nossa vida. A aceitação do que somos é o mais profundo acto de revolta contra tudo o que nos infunde tristeza e desolação. E é a coisa que o ego mais teme: que passemos a viver a vida na serenidade que nasce de nos sabermos ligados a tudo.

Nada pode cortar essa ligação umbilical entre tudo o que há. Mesmo que esse tudo seja um nada superabundante. E feitas as pazes connosco e com a nossa vida, não adiantará mais chorarmos sobre o leite derramado, por assim dizer. O que aconteceu, aconteceu, nada poderá mudar o passado. Mas podemos mudar a nossa atitude face ao passado, em vez de o tomarmos como uma carga de dor de que não nos podemos descartar, vale a pena encará-lo como aquilo que em realidade é: uma não existência, posto que agora só existe o presente e é para o presente que nós vivemos.

Mas isto é algo de muito batido. Uma das crenças que o ego infunde é de que a verdade tem que ser conseguida à custa de elaboradíssimas pesquisas, tem que vir revestida da autoridade de pessoas que estão muito acima do resto da humanidade. O que nos leva a desvalorizar muitas pessoas que consideramos menos dotadas, ou menos cultas. Mas as grandes verdades estão ao alcance das mentes mais simples. E as mentes mais simples são as que estão mais abertas ao infinito. Tão abertas que não vêem a necessidade de construir os imensos castelos de areia com que se afadiga o ego da maioria das pessoas. No fim de contas todos esses castelos se esboroam, seja qual for a intenção que os erigiu. O lugar de chefe dos egos ávidos de reconhecimento dura pouco. As riquezas por mais opulentas não podem aumentar um segundo o tempo de vida de quem as detém, apesar do dinheiro poder comprar os mais avançados cuidados médicos.

Quem quer ser milionário? Haverá alguém que não queira ser milionário? O que leva pessoas com oitenta e muitos anos a jogar no euromilhões? É claro que têm esse direito, mas penso que hoje em dia é difícil de perceber a atitude contrária: o não querer ser milionário. E há várias consequências disto que são interessantes, em primeiro lugar, haver milionários não levanta problemas. Embora as pessoas critiquem a existência de desigualdades sociais, não consideram obsceno que existam pessoas, e organizações, que possuem não só mais do que os outros, mas muitíssimo mais, como se esse desequilíbrio na distribuição da riqueza fosse meramente aparente, ou seja, como se a riqueza e a pobreza não pudessem ser faces da mesma moeda. O que atira os pobres para o campo dos falhados, dos que não souberam fazer-se à vida, dos que, também, não tiveram sorte, o que desculpa os ricos, pois a sorte não se discute, é uma das leis da vida (de acordo com esta visão distorcida das coisas).

A aceitação a que me refiro não tem a ver com esta resignação face às injustiças. É algo de mais profundo e que está fora desta lógica. Uma pessoa pode aceitar-se e, ao mesmo tempo, pode lutar pela justiça social, não há contradição nenhuma nisto. O que acontece muitas vezes é que as pessoas se culpabilizam pela sua situação. O medo e a culpa ajudam à manutenção deste estado de coisas inaceitável.

Por isso há que mudar a forma como encaramos a sociedade. E o nosso papel nela. Por mais que sintamos o abismo que nos separa dos outros, o que precisamos de não esquecer é que esse abismo resulta das estratégias do ego para tomar posse da nossa existência. O melhor a fazer é tomarmos consciência disso como um sintoma do egotismo de que se entretecem as relações humanas.

domingo, janeiro 03, 2010

Educar. Para quê? Para quando?



Revisitemos a alegoria da caverna de Platão. Um dos textos fundadores do Ocidente.

Mas note-se que a imagem da caverna está presente, de forma não negligenciável, no pensamento oriental. Isto só para lembrar que no que se refere ao pensamento, as portas nunca abrem só para um lado.

É impossível aprofundar a análise desta peça da tecitura da metafísica ocidental, naquilo que ela tem de fundante e de constringente para a nossa contemporaneidade pensante, sem seguir os veios comunicantes que a ligam ao resto da obra em que se insere, a República, e daí para o todo do corpus platónico, pelo que nos ficaremos pela alusão, esquemática e superficial, a alguns dos aspectos da alegoria, sem procurar aprofundar a nossa análise da alegoria enquanto alegoria, da sua intencionalidade exemplificativa.

Um dos aspectos que considero mais marcantes é o facto de Platão nos apresentar uma caverna construída pelo homem, trata-se dum dispositivo (uso aqui este conceito em proximidade a Foucault e a Agamben), mais do que uma disposição natural da espacialidade narrativa, que introduz na narrativa uma meta-temporalidade, o tempo da construção da caverna, submetido a uma intencionalidade que não influi directamente no sentido marcadamente analógico da alegoria, mas que pode levar mais longe a apropriação analógica do sentido da alegoria: somos nós que estamos a ser representados, nós, os destinatários do relato, numa interpelação que é, ao mesmo tempo histórica e meta-histórica – no fundo, Platão aflora a temporalidade escatológica ao representar a condição dos homens no seu enraizamento histórico-cultural e não apenas a condição dos atenienses do seu tempo. Tal como a sua República será o corolário duma meta-política, na verdade a metafísica instaura-se, desde Platão, como uma versão totalizante da soberania, a caverna é a sua legitimação irónica.

Encontramo-nos sempre numa actualidade que resulta dum conjunto de condições prévias. Condições essas que podem servir como condicionantes ou como vias de realização do nosso potencial existencial. E nenhuma actualidade é, por si só, isenta de constrangimento e de obstáculos ao desenvolvimento do pensamento livre e da vida emancipada. E a emancipação a ser vivida terá que sê-lo a partir do protagonismo do indivíduo que existencialmente enfrenta os obstáculos que a sua vida lhe proporciona.

Educar, na perspectiva platónica, é abrir espaço ao desabrochar da auto-descoberta da verdade, encarada como o sentido de toda a experiência e de toda a volição. O problema que se nos coloca, e que Platão a seu modo solucionou a partir da sua ontologia erroneamente considerada dualista, uma vez que a sua visão crepuscular do ser e da verdade pressupõe uma continuidade que só extrinsecamente se pode considerar ilusória, é o de saber como enfrentar o abismo do íntimo sem o esteio duma metafísica que absolutamente funde todo o relativo.

Assim, a caverna pode, com a sua força analógica, lançar uma luz inquietante sobre a Escola. A Escola é um dispositivo de sujeição ou de emancipação? Ela é, tal como a caverna, uma construção humana, uma construção social. Na sua base está um conjunto heterogéneo de investimentos duma imaginação colectiva que visa a reprodução duma imagem da sociedade tida como tradicional, como digna de ser reproduzida e transposta para o futuro. Mas o que temos de facto é um conjunto de estratos resultantes da sedimentação da vida política, cultural, social, das sociedades ao longo de períodos mais ou menos longos. Até as rupturas deixam marcas e destroços. E perdem o seu sentido originário.

No que diz respeito à sociedade portuguesa, mas isso também é visível em todas as sociedades ocidentais, a escola tem sido o principal objecto de investimento sócio-político. A Primeira República, por exemplo, tem uma intencionalidade pedagógica, nem sempre objecto de sistematização, que se manifesta no investimento na escolarização, insuficiente mas visível, e na retórica de regime que procura dar sentido ao caos que se vivia e que acabou por abrir espaços à ditadura , o pior flagelo da nossa história colectiva.

Estamos hoje muito longe dos mais de 70% de analfabetos com que Portugal entrou na primeira década do século XX. E não nos iludamos: esse percentil é uma consequência da grande assimetria social que sempre caracterizou a sociedade portuguesa, é um sintoma indesmentível da injustiça social.

Cem anos passados não nos libertámos ainda desse paradigma social. E se se tem a consciência de que a Escola é o tabuleiro onde se joga muito do que poderá ser a justiça social, não podemos ficar indiferentes em relação à forma como se instituiu a insularização social da Escola e ao aprofundamento desse processo nas mais recentes medidas de política educativa.

A Escola estrutura-se como um dispositivo de segregação social das crianças e dos adolescentes, para não falar das crianças portadoras de deficiência (por que razão o tema da deficiência raras vezes surge como digno de ser pensado, e de ser vivido ,quando se trata de pensar e re-pensar a sociedade?). Não há nenhuma razão para impedir que a escola seja um ambiente de interacção geracional.

Esta segregação social das cianças, agrupadas e estratificadas em segmentos etários, impede a educação para a diversidade e a diferença. Gera egocentrismo e indiferença em relação ao outro e impede que se experiencie o saber como sabedoria. Aliás, o que acaba por ser exilado da cidade ideal não é, hoje, o poeta, mas o sábio. A cidade ideal da era da informação vê na sabedoria a loucura a exorcizar. A sabedoria faz baixar o valor de mercado da informação. Põe em causa os sistemas de valor que transformaram, progressivamente, o saber e a cultura, em mercadoria.

A cultura não se consome, consuma-se.

O sábio é o que recusa o estatuto de produtor (a cultura não se produz nem se consome) e o de mero consumidor/espectador cultural e assume, de forma plena e nunca preterida, o estatuto de criador. O leitor dum poema é, ele próprio, poeta, o mesmo acontece com quem, agostinianamente, assume a vida como poesia.

Os alunos são colocados na escola como integrantes dum sistema de indução do saber, do saber-feito, e não de indução ao saber, encarado como sabedoria.

Na alegoria da caverna, um dos prisioneiros é solto das amarras. Esse não é um acto de libertação. Paulo Freire descobriu bem cedo nas suas experiências pedagógicas junto dos oprimidos que uma das características da mente oprimida é o medo da libertação. Isto porque a opressão assenta em mecanismos de coacção física (o domínio sobre os bens necessários à vida, a sua distribuição mediada por mecanismos criadores de escassez para obrigar os pobres a trabalhar) e em mecanismos de dissuasão da tomada de consciência da situação de opressão e das vias que poderiam levar à libertação. Estes mecanismos de dissuasão são muito mais coersivos do que os mecanismos físicos de coação. Os indivíduos poderão mesmo ser levados a estimar a sua servidão. As retóricas dos nacionalismos patrioteiros têm servido esse propósito: 'nós todos amamos a Pátria e a Pátria ama-nos a todos, mas tu, por seres inferior, tens que trabalhar sem outra retribuição do que a miséria da tua situação'. A questão está em saber quais os critérios de discriminação entre seres humanos. E é aí que reside a estupidez do pensamento monárquico moderno. Que Rousseau desmontou com uma lógica inabalável: se formos todos descendentes de Adão, não temos todos o direito ao trono? No fundo, colocar a desigualdade como critério de soberania é impedir a vigência da Frátria. E por que razão grande parte da humanidade, e dos nossos concidadãos, se quisermos ficar-nos pelas fronteiras em que nos enclausuramos, deve ser reduzida a um estatuto de menoridade em termos de cidadania e de espiritualidade?

O acesso à auto-estima e à consideração social, essas as 'torneiras' que a escola começa por controlar no sentido de conseguir a acomodação social dos indivíduos. Os alunos com inteligências mais criativas, menos subjugáveis à mecânica da indução do saber, são tratados como párias, vêem a sua auto-estima sistematicamente destruída, ao passo que os que têm uma inteligência mais amestrável e mais subjugável aos regimes da ruminância curricular, são elogiados e incentivados.

Como diz Marx nas Teses Sobre Feuerbach, 'o educador também precisa ele de ser educado'. É esta a situação dilemática a que a alegoria da caverna nos conduz: como libertar, libertando-nos? E como libertar sem estar a criar novas instâncias e dispositivos de servidão e de subserviência?

O homem desacorrentado e projectado para fora da caverna atinge, nesse momento, o pico da sua opressão, porque deixa de ter razões para se considerar uma vítima dum processo que lhe escapa: sem as correntes, sem estar preso dentro da caverna, a sua sujeição é uma coisa sua, como sempre fora. O mesmo será a sua libertação. Que só o será autenticamente quando toda a sujeição for ultrapassada, ou seja, quando todos se virem como libertos, quando todos conseguirem aderir à sua própria liberdade.

E não estamos melhor posicionados, na nossa actualidade, para prosseguirmos este esforço de emancipação. Não é verdade que tenhamos assistido ao fim das ideologias. Não vivemos numa era pós-ideológica. Muito pelo contrário, vivemos imersos num contexto repleto de dispositivos de alienação, de persuasão e de dissuasão. A própria ciência e a técnica, seguindo muito de longe Habermas, mas muito de longe, são, potencialmente e em acto, ideologia, têm funções políticas que não podem ser esquecidas. É isso que dá sentido à mentalidade tecnocrática que se infiltrou nos sistemas políticos modernos. E as ditas ciências humanas também estão implicadas neste processo. Como se vê hoje com a nova dogmática, a Economia. As reformas sociais, as mudanças políticas, têm como limite os ditames dessa ciência anfibológica.

Ora, o próprio 'saber' escolar (escolástico) é em si próprio ideológico. Não que não deva ser ensinado. É que o ensinar para a sabedoria é uma prática que na antiguidade se designou como Filosofia. É que não basta só ensinar, há que criar o hábito do recuo crítico e projecção ética.

E em relação a isso há muito que pensar e discutir. Porque na nossa actualidade, como em todas as outras, a Filosofia deve ser decisiva. Digo 'deve ser' porque muito do que se publica e ensina como 'filosofia' não passa de neo-retórica e de pseudo-saber, um jogo de jogos de linguagem, uma mimética de linha de montagem. Quantos dos investigadores na área da Filosofia não são meros repetidores do já dito e pensado, meros cultivadores dum saber vegetativo? Estando por inventar um aparelho que funcionasse no cérebro como um desfibrilador da inteligência, a tarefa do Filosofar pode ficar por cumprir por falta de comparência do Sujeito capaz de Pensar.

Mas este recuo crítico e esta projecção ética não podem ser induzidos, não podem ser 'ensinados' porque aí seria parte da estrutura constringente da caverna. Têm que ser vividos como o próprio do aceder à consciência. O sermos capazes de negação sem negatividade, de pôr em causa o dado e o afirmado e, ao mesmo tempo de, sem negatividade, enfrentarmos o outro como indissociável da nossa humanidade, é isso que nos torna capazes de assumir o profundo e o elevado da nossa condição.

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Hopenhagen: foi você que pediu um desenvolvimento sustentável?


As Nações Unidas tentaram modificar a atitude dos Estados para com o meio ambiente, com uma série de conferências que visava o estabelecimento de acordos internacionais que permitissem articular uma estratégia global para a preservação do meio ambiente.

Por muito que se fale hoje nas alterações climáticas decorrentes da industrialização, já na conferência de Estocolmo, em 1972, foram apresentadas evidências científicas do impacto da acção humana no clima, para além de todo um manancial de dados sobre a contaminação dos solos e dos habitats marinhos à escala global, bem como sobre o desmatação, em processo acelerado, cujos efeitos se vieram a tornar cada vez mais evidentes.

Nessa altura o acordo falhou porque os países ditos sub-desenvolvidos e que hoje em dia são designados, eufemisticamente, países em desenvolvimento, quiseram fazer valer o seu direito ao desenvolvimento pleno, em pé de igualdade com os países ricos que tiveram a oportunidade histórica de se desenvolverem sem entraves a ponto de abocanharem grande parte dos recursos do planeta.

Vinte anos mais tarde, na conferência do Rio, embora se tenham lançado as bases do acordo que seria alcançado cinco anos mais tarde, em Quioto, o mesmo argumento fez-se ouvir com mais insistência, com o Brasil a liderar os esforços dos países que partilham a Amazónia para impedir uma internacionalização jurisdicional da Amazónia e das outras manchas de floresta tropical. O que se pretendia era que a Amazónia fosse declarada uma reserva ecológica com o mesmo estatuto da Antárctida.

Hoje a área florestal do maior pulmão do planeta está muito reduzida se comparada com a sua extensão em 1992 e a desflorestação continua a um ritmo cada vez mais acelerado, com a agravante de ser levada a cabo através de mega-queimadas, com o elevadíssimo custo em emissão de gazes provocadores do efeito de estufa. A contribuir para isso, de forma paradoxal, está a busca de alternativas aos combustíveis fósseis virada para o biodiesel, afinal o último recurso para salvar o paradigma do motor de explosão e a actual configuração da indústria automóvel.

Esta pressão provocada pela produção de combustíveis ‘verdes’ leva à necessidade de aumentar a superfície arável e, também, de aumentar a percentagem de terras aráveis dedicadas à produção de matéria-prima para a nova indústria dos combustíveis. Isto teve uma consequência terrível na vida das populações mais pobres, uma vez que o preço dos alimentos à base de cereais passou a estar indexado às oscilações do preço do petróleo, o que levou a que os mesmos especuladores que, ao que parece, precipitaram a actual crise económica, se tenham refugiado no mercado de futuros, hipotecando a sobrevivência de milhões de seres humanos, uma vez que esta pressão especulativa faz disparar os preços das colheitas e, consequentemente, dos alimentos processados.

Assim, o aumento da superfície arável não contribuiu para diminuir a escassez alimentar, antes é um dos principais factores do seu aumento.

A par disto há a autêntica invasão de África por países como a China e a Índia nos quais a pressão demográfica exige um crescente fornecimento de alimentos, matérias-primas e combustível. Como consequência estão a surgir gigantescos complexos agro-industriais em países praticamente sem uma agricultura local, verdadeiramente sustentável em articulação com a vida cultural das comunidades locais. Esta começa a ser neste momento a principal ameaça à sustentabilidade alimentar dos países mais pobres.

E neste sentido a política diplomática da nova administração americana em relação a África não traz nada de novo, o que se tornou bem visível no périplo que a Secretária de Estado Hillary Clinton fez por alguns dos mais importantes países africanos, no que diz respeito à sustentação da actual ordem económica mundial, planando olimpicamente por cima das questões relacionadas com os direitos humanos e as assimetrias económico-sociais.

Ainda está por contabilizar o peso das chamadas tecnologias verdes no agravamento da situação dos povos à beira da ruptura alimentar. É que a questão não está apenas na diminuição das emissões, ou no uso de alternativas menos poluentes, mas à sustentação do actual sistema económico que está a aumentar exponencialmente a escalada da industrialização, em vez de se diminuir a produção desenfreada de bens que têm uma mais-valia pulsional, mas quase nenhum benefício na sustentação duma vida humana em plenitude, continua a alimentar-se a neuro-esfera planetária com uma supra-estrutura de produtos imediatamente consumíveis (também no horizonte dito cultural), sustentada numa infra-estrutura produtiva completamente desenraizada da vida comunitária, da cultura das comunidades de base e do ritmo, esse sim ecológico, duma vida individual e colectiva em comunhão com a Natureza.

Neste sentido, Copenhaga será uma resolução do problema através da elisão das arestas do problema, num processo de dissuasão do questionamento e da crítica livre e profunda. E o que é sintomático de que há algo de muito importante em jogo, é que se consegue transformar os tradicionais mecanismos de emancipação em formas de dissuasão: o apelo a uma cidadania global, a ideia de que os líderes estão a ser liderados pela opinião pública global, quando isso não é verdade, uma vez que os Estados ganham direito de cidade mesmo se continuam a desrespeitar os direitos humanos, sem diminuírem a carga de sofrimento que hoje impõem aos seus povos e aos povos por si dominados. (Quanto à autêntica cidadania global, veja-se a entrevista, preclara e muito oportuna, concedida por Fernando Nobre ao jornal Expresso na sua última edição).

Esta manobra de dissuasão leva a que os chamados ‘povos’ indígenas sejam apresentados como ex-líbris desta ‘conferência da esperança’, numa decapagem mediática das camadas de ruído subliminar que a consciência da verdadeira situação desses povos poderia acrescentar à mensagem. Há, então, uma absolvição dos crimes contra a humanidade sob a forma dum manto verde que se espraia sobre um planeta em convulsão e onde o espectáculo mediático gastou a força constritora das imagens da fome de das crianças esqueléticas – que, por estranho que pareça, existem hoje num número muito maior do que em qualquer época anterior.

E este é um ponto decisivo: só haverá uma autêntica revolução ambiental no mundo quando os direitos humanos forem reconhecidos como o centro das mudanças a realizar. E forem encarados como uma via para o reconhecimento da senciência como a base de qualquer tipo de respeito, não excluindo, assim, todos os seres vivos.

Neste ponto tocamos no nó górdio do que urge combater: só quando se colocar em cima da mesa o actual conceito de desenvolvimento, encarado como um progresso indefinido, sempre crescente, para se equacionarem outras formas de crescimento, e entre elas considerando o crescimento espiritual como o mais precioso e benéfico, é que os actuais problemas serão atacados de forma séria.

O mito do progresso que alimentou o imaginário iluminista é o pior veneno que a civilização ocidental tomou e deu a tomar ao resto do mundo. O progresso, sem autêntico regresso é uma ilusão desumanizadora e castradora em termos espirituais. Temos que ser capazes de compreender até que ponto, ou a partir de que ponto, produzir mais é produzir demais.

Qualquer outra via, seja qual for a sua dimensão, será comparável a querer retirar o carbone das garrafas de pirolito.

quarta-feira, novembro 18, 2009

Quem precisa dum farol?


Por muito que se fale do amor e se escreva acerca dele até que as palavras se incendeiem e nos transportem para lá do habitual e do quotidiano, parece que se esquece que aquilo que, justa ou injustamente, chamamos quotidiano, o viver da proximidade e da tangência, resulta da forma como amamos ou não amamos. E é verdade que a moral pode ajudar a cercear as divagações, os desvios do comum e do sabido. Mas se acolhemos o imprevisível no âmago do que vivenciamos, as fronteiras e as estradas são estilhaços, o cenário duma fantasmagoria que abandonamos de livre vontade.

Hoje, por ser feriado, não pude ir à prisão dar a minha aula das Segundas-feiras. Nem sei se estas reflexões são partilháveis ou se a partilha delas será uma profanação, mas haverá sempre um leitor com coração e por enquanto a partilha parece-me importante.

Hoje, neste dia invernoso, o impacto do início do dia de trabalho teria sido, certamente, muito intenso. Lembro-me do amanhecer do dia em que dei a segunda aula na prisão, como me impressionou o caminhar abatido dos homens envoltos em bruma da primeira brigada, composta por aqueles que trabalham no complexo prisional. Caminhavam calados, de olhos no chão, acompanhados pelos guardas armados. Parecia que a esperança fora encorraçada daquele espaço penal. O que vale o ser humano? Por muito que queiramos arrumar a patência do si e da vida, vivida na sua concretude constritora, no caixote dos brinquedos inúteis, o que vale um ser humano?

Depois veio a brigada dos alunos da escola. Ainda havia nevoeiro e senti que tinha que fazer alguma coisa na aula para convocar o sol e a elevação para o centro da aula. Mas era difícil. As primeiras aulas foram um tímido arremedo das aulas a que me tenho habituado. Há olhares tristes que, se não nos agarrarmos com todas as forças à luz que vem de dentro, nos deixam vazios e gélidos, completamente vencidos pela melancolia.

Mas a Aula, encarada como espaço de liberdade e entrega, foi desabrochando semana a semana. Até se atingir um clímax, duas semanas atrás. Começo sempre com uma pequena divagação e naquela aula, não sei bem porquê, conduzi os alunos para um terreno pantanoso: a reflexão sobre a felicidade. As três horas seguintes foram, talvez, as mais intensas da minha vida...

A conversa começou, como é costume com as turmas de adolescentes, cada um foi falando da sua ideia de felicidade, sempre apontando para o futuro como o horizonte de conquista desse objectivo supremo. Eu fui sempre usando da ironia: o que é que os impede de serem felizes hoje? Aqui? Agora? Um aluno apontou para as grades do lado de fora das janelas e eu respondi-lhe que não via grades do lado de dentro. E aí o mais brusco e menos colaborante disparou: “e você, o que é a felicidade para si, não me vai dizer que é feliz...”

Eu respondi-lhe: “É claro que sou feliz!”

- “Então, tem tudo o que quer?”, respondeu rindo em tom de desafio.

- “Não tenho nada do que não quero e acho que isso já me ajuda em muito”. Isto fez com que o brutamontes, sempre com um sorriso trocista, dissesse entre dentes: “Já vi tudo, você já está pronto para arrumar as botas, que idade tem?”

À minha resposta informou-me que tem menos uma década do que eu, mas que ainda lhe falta fazer muita coisa na vida e que não estava pronto para morrer e nem o estaria quando chegasse à minha idade. Eu disse-lhe que a felicidade talvez não tivesse nada a ver com coisas que se podem fazer, ou não, na vida e que poderíamos ser felizes, alcançássemos, ou não, os nossos objectivos.

- Então diga lá qual é o seu conceito de felicidade...

É. Eu não tenho um conceito de felicidade. “Toda a gente tem um, você está para aí a falar, a falar só para gozar com a nossa cara... diga lá qual é o seu conceito de felicidade.”

Perante a risota geral, mesmo dos rostos mais tristes que me deixaram apreensivo ao longo das aulas anteriores, eu disse: “vocês estão a ser fedorentos sem gato!” e lembrei-lhes a história do camponês em frente da lei do texto de Kafka que deixou meia turma pensativa na aula anterior. Que importa termos muitas coisas ou fazermos muitas coisas, se não acabarmos com a nossa insatisfação? E se, tal como acontece com o camponês que tinha uma porta da lei só para ele, mas só o soube no fim da vida, nós tivermos uma vida toda para nós? De que é que podemos usufruir para além da nossa vida? Por isso a nossa vida parece-nos o que há de mais precioso, porque é que não poderá ser isso a dar sentido às coisas e aos acontecimentos por que passamos?

E nisto ouviu-se uma voz que me cortou o fio ao raciocínio:

- E se só levámos porrada? O professor já alguma vez comeu sopa com os dentes partidos, com o sabor da sopa e do sangue misturados? Com dez anos?

Não. É claro que não. Essa é uma experiência sua, João. O João deu sentido a esta interpelação na aula da semana passada quando dei à turma uma tarefa “perigosa”: cada um iria escrever uma carta à pessoa a quem mais odiasse. O João, um menino de trinta e poucos anos, escreveu uma carta ao padrasto. Costuma ser dos últimos a acabar as tarefas, desta vez foi o primeiro: uma folha A4 que me foi entregue por uma mão trémula e naqueles olhos acesos percebi o sofrimento e autenticidade daquela prova. Tem uma infância terrível o João. “Foste tu quem me pôs aqui, correste comigo do amor da minha mãe, fizeste-me mau e agressivo, deste-me tanta porrada...”. “Sabes o que me apetecia fazer contigo? Nem imagines...”.

Mas o mais interessante da carta é a frase: “roubaste-me tudo, seu porco, mas não vais roubar-me uma coisa: não me vais impedir de ser feliz.”

Quando li isto fiquei na dúvida se deveria dar continuidade à actividade. Mas... E, na posse das cartas, informei a turma de que agora cada um deveria colocar-se no lugar do destinatário da carta e responder. Houve muita agitação, um aluno disse-me que eu não sabia o que estava a provocar. O João perguntou-me: “e se essa pessoa já morreu?” Eu respondi-lhe que o ódio tem o condão de ressuscitar qualquer morto, pelo que seria fácil escrever a carta. E o João escreveu. Poucas linhas, algo assim: “não quero que me perdoes, sei que te fiz muito mal, mas deixa-me arder em paz no inferno.”

Mas, voltemos à aula sobre a felicidade. O que é que se pode responder ao João? Foi aí que peguei numa ficha sobre Etty Hilessum que e eu trazia dentro da minha pasta desde a primeira aula, à espera dum momento propício. O João começou a ler os textos. A minha colega das aulas de 5ª-feira passara o filme “A vida é bela” e o João estudou o fascismo, tendo ficado muito impressionado com o anti-semitismo. As palavras de Etty comoveram-no. E, contrariamente ao que é costume, quis ler os textos em voz alta.



"Acredito verdadeiramente que é possível criar, mesmo sem jamais ter escrito uma palavra ou pintado um quadro, apenas moldando a nossa vida interior. E isso também é uma proeza." |Etty Hillesum



O João é uma obra de arte... Enoja-me a imbecilidade, a tendência para discriminar, para distinguir e julgar os homens. Não há homens superiores, apenas a superioridade de ser homem, ou cão, ou formiga, não estou a ser antropolátrico, se manifesta de formas muito estranhas, por vezes quase invisíveis. Cada vida é um alvor incontível. E nada de lançar cinzentismos ou qualquer forma de cloro conceptual sobre a mirífica paleta que se abre aos olhos do coração quando queremos ver o que há. Se queremos ver, vemos. Não é João?

Ora, tudo isto desemboca no amor. Só quem ama se liberta da necessidade de vir a ser isto ou aquilo. A criatividade mais pura...

E isto já tinha ecoado nas quatro paredes daquela sala com grades por fora, logo na primeira aula. Duma forma quase descabida disse aos alunos que todos éramos capazes de fazer milagres, de criarmos amando, de sermos para lá do feito e do consumado. E quando perguntei se alguém ali já tinha feito um milagre, um vozeirão respondeu no fundo da sala:

- Eu já, a minha filha!

Eu respondi-lhe que não lhe devia ter custado nada fazer esse milagre, o que arrancou a seguinte tirada do colega do lado do dono do vozeirão que provocou o riso geral: “custou-lhe uma dor de costas!”



"Sei do grande sofrimento humano que se vai acumulando, sei das perseguições e da opressão… Sei de tudo isso e continuo a enfrentar cada pedaço de realidade que se me impõe. E num momento inesperado, abandonada a mim própria — encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me, e nem sequer consigo descrever o bater do seu coração: tão fiel como se nunca mais findasse…" |Etty Hillesum



A aceitação! Só vive mesmo quem aceita a vida. Só tem mérito quem se merece e só se merece quem aceita, incondicionamente, a si próprio e aos outros. A aceitação! Esta palavra, como eu esperava, incendiou a aula. Mas duma forma que eu não imaginara.

O joão continuava a ler as palavras de Etty:

Nova certeza: que querem o nosso extermínio. Também isso eu aceito. Sei-o agora. Não vou incomodar outros com os meus medos, não vou ficar amargurada se outras pessoas não entenderem do que se trata, para nós, judeus. Esta certeza não vai ser corroída ou invalidada pela outra. Trabalho e vivo com a mesma convicção e acho a vida prenhe de sentido, cheia de sentido apesar de tudo, embora já não me atreva a dizer uma coisa dessas em grupo. O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as bolhas nos meus pés gastos e o jasmim atrás do quintal, as perseguições, as incontáveis violências gratuitas, tudo e tudo em mim é como se fosse uma forte unidade, e eu aceito tudo como uma unidade e começo a entender cada vez melhor, espontaneamente para mim, sem que ainda o consiga explicar a alguém, como é que as coisas são.” |Etty Hillesum

A leitura deste excerto do Diário provocou uma reacção muito enérgica dos alunos de origem africana: “aceitação?! Temos que aceitar o racismo?!”. Tinham ficado chocados com uma reportagem dum telejornal sobre o racismo. Perguntaram-me se se poderia aceitar a acção do branco que tinha agredido um menino negro que ocupava um baloiço para que o seu filho pudesse andar no baloiço. Ao reagir a mãe do menino fora também agredida. A revolta dos meus alunos explodiu ali bem à minha frente. O que tem esta terra de especial para a considerarmos razão suficiente para a discriminação? Nascer aqui, ou além, qual a diferença? E tudo jorrou cá para fora: o racismo inerente ao sistema prisional (na perspectiva dos condenados), a discriminação que existe mesmo na escola primária: o Duarte diz que se alguém lhe tivesse dado a mão na escola não teria ido parar à prisão com 16 anos. Era preto, era natural ser bandido. Toda a gente achou natural e inevitável. A prisão é só para alguns.

A revolta dos meus alunos, que já não conseguiam sequer estar sentados enquanto desabafavam, levava a que me bombardeassem com a pergunta: “acha bem?!” Eu apenas respondia: “vocês acha bem? Então porque é que eu haveria de achar bem?”

A dada altura o aluno mais revoltado deu-se conta de que eu ainda não os tinha “mandado” calar. Eu perguntei-lhe porque é que ele dizia isso e respondeu-me: “É o que toda a gente faz connosco, mas já estamos há mais de uma hora a falar.”

- E professor, eu cresci nas barracas, fui atirado para um bairro social longe de tudo, fui apontado a dedo, maltratado...

E eu:

- De onde onde julgam que eu venho?

E contei-lhes as minhas origens e de que elas não me impedem de ver que todos os homens são dignos da mais alta consideração e que ninguém é mais ou menos do que ninguém...

- Então o professor compreende-nos! - E vi duas lágrimas a correr naquela cara exaltada e dura. - Agora sei porque é que o professor nos olha nos olhos e está aqui connosco...

E alguém lembrou as minhas primeiras palavras, na primeira aula. Esse alguém acabou por confessar que na primeira aula ficou com a convicção de que eu era maluco.

Essas primeiras palavras foram: os muros da prisão têm dois lados, vocês estão presos deste lado, as outras pessoas estão presas do outro lado. A grande diferença entre “cá dentro” e “lá fora” é que lá fora há muito mais criminosos do que cá dentro. As pessoas lá de fora julgam-se diferentes e melhores do que vós, essa é a sua prisão. O que eu gostava era que vocês se libertassem da prisão de cá de dentro e lá de fora.

Quando saírem e se sentirem discriminados, encarem isso como o resultado da prisão lá de fora. Muitas pessoas querem-se sentir melhores do que os outros, apontam o dedo aos que “falharam”. A melhor reacção que podemos ter perante os outros não é o moralismo, mas a aproximação. E isso começa com os que nos são próximos: todos precisam de ser amados, se um amigo não se mostrar conforme aos nossos padrões morais o que merece mais respeito e amor é o nosso amigo e não os nossos padrões morais, quem sabe se o seu abismo não está apenas no distanciamento que colocamos entre nós e ele? Quem pode cair no abismo do amor e magoar-se?

Da minha parte... nunca o servilismo ou a subserviência. Nem a dúvida sobre se vale a pena amar, mesmo que o deserto esconda a visão das flores.

E sobre o racismo, enfim, disse que estava muito triste porque os porcos dos racistas estavam a ganhar. Eram mesmo melhores do que os meus alunos, porque conseguiram vencê-los e tomar conta do seu coração e envenenar cada um dos seus dias. O toque impediu mais desenvolvimentos, mas o futuro promete.

A minha vida já mudou por causa disto. Que mais se seguirá?

1 de Dezembro de 2008


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